top of page

A infância dura para sempre

Helena Neiva, Presidente da Fundação Pitágoras


Os órfãos da Romênia

Começamos com uma história chocante.


Em meados da década de 60, um ditador chamado Nicolae Ceasescu implementou uma política macabra para fazer da Romênia uma super potência, e o caminho para isso era aumentar a população com o intuito de crescer sua mão de obra. Para tanto, proibiu todos os métodos contraceptivos e punia os casais que evitassem ou tivessem poucos filhos, fiscalizando até o ciclo reprodutivo das mulheres.


Conseguiu seu objetivo: a taxa de natalidade explodiu, mas diante da miséria e da dificuldade de se criar muitos filhos, muitas crianças foram abandonadas por suas famílias. Consequência: 170 mil órfãos, criados em abrigos. A história consegue ficar pior – os responsáveis por cuidar dessas crianças eram orientados expressamente a não interagir com elas, não podiam pegar no colo, dar carinho e nem atender ao choro.

“Muitas coisas que precisamos podem esperar. A criança não pode. Exatamente agora é quando seus ossos estão sendo formados, seu sangue está sendo produzido, os sentidos estão se desenvolvendo. Para ela não podemos dizer AMANHÃ. Seu nome é HOJE”. Gabriela Mistral, educadora chilena.

A partir da década de 90, quando Nicolae foi deposto, o mundo tomou conhecimento dessa aberração e diversos estudos puderam ser conduzidos para avaliar os efeitos da negligência na infância. Os órfãos da Romênia tornaram-se adultos subdesenvolvidos, irreconhecíveis, incapazes, com o olhar morto e deficiências de peso e estatura, a ponto de um jovem de 30 anos aparentar 12 de idade.

Não faltou um teto, nem comida, nem vacina, nem higiene. Afinal, o que deu errado? Veremos a seguir.


CONSCIÊNCIA | NEUROCIÊNCIA| TRANSCENDÊNCIA


Se existe um tema que engloba de forma integral e profunda essas 3 dimensões – consciência, neurociência e transcendência – trata-se da Primeira Infância, período que compreende desde o nascimento até os 6 anos de idade.


A infância é a fase mais curta da vida do ser humano, mas ela dura para sempre. Tudo que acontece nessa janela, sobretudo nos primeiros 1.000 dias (primeiríssima infância), vai reverberar pelo resto da vida. Para o bem ou para o mal. Isso porque é justamente nessa faixa que vai de 0 (desde o momento da concepção!) a 6 anos que 90% das conexões cerebrais são formadas, a um ritmo inacreditável e alucinante de 1 milhão de sinapses por segundo! É um momento absolutamente único e determinante. Grande parte das pessoas acredita que a criança começa a aprender quando vai para a escola, com cerca de 4 anos de idade. Na verdade a criança começa a aprender ainda no útero materno! Quando entra na fase escolar, a maior parte dessa janela mágica já se fechou.


Nas últimas décadas, a partir de 1980, cientistas por todo o mundo, das mais diversas áreas e campos do conhecimento – Psicologia, Filosofia, Educação, Medicina, Economia, sobretudo a Neurociência - têm se debruçado sobre esse assunto e comprovado que é nos primeiros anos de idade que se formam as bases das habilidades e competências que afetarão a aprendizagem, o comportamento e a saúde por toda a vida.


Cuidar da Primeira Infância melhora o desempenho escolar, aumenta a inserção no mercado de trabalho com melhores salários, promove maior estabilidade familiar, longevidade, saúde física e mental – um ciclo virtuoso potente e exponencial.

O outro lado da moeda, os primeiros anos de vida tratados com negligência geram mais evasão escolar, violência, criminalidade, propensão ao uso de drogas e graves problemas de saúde, como doenças cardiovasculares, diabetes, depressão, entre outras – um ciclo vicioso, igualmente potente e exponencial.

ree

Um dos mais importantes estudos é do economista prêmio Nobel, James Heckman, que comprovou que cada 1 dólar investido na primeira infância representa 7 dólares de retorno no futuro. Aproveitar esse momento crítico de desenvolvimento cerebral lança a fundação para um adulto formado de maneira integral, gerando ganhos no futuro e em cascata nas áreas da educação, saúde, segurança e economia. É portanto a política pública de menor custo e mais efetiva que um país pode apostar, nas palavras do economista, ”é uma rara iniciativa de política pública que promove equidade e justiça social”.


Como nos provou Heckman, a atenção com a primeira infância é crucial para toda criança, mas especialmente para as mais pobres e vulneráveis. As famílias com mais escolaridade e renda, na maior parte das vezes, conseguem proporcionar todos os cuidados que essa fase requer – alimentação, vacinação, higiene, atenção. As famílias mais pobres, por falta de recursos e por desconhecimento, não conseguem. É no início da vida, como em nenhuma outra fase, que é possível atuar para mitigar as desigualdades.


Um estudo impressionante e que corrobora esse fato, revelou que as crianças de famílias mais pobres ouvem por hora cerca de 1/3 da quantidade de palavras, em comparação às crianças de famílias ricas. Na projeção realizada, isso representa 30 milhões de palavras desconhecidas aos 4 anos de idade para as crianças vulneráveis. Não se pode falar em meritocracia com linhas de largada tão distantes. Essas famílias excluídas em geral não sabem que é importante interagir e conversar com os bebês, por imaginarem que eles não entendem o que está sendo dito. O simples fato de ouvir uma palavra nova acende novas conexões no cérebro!


Muitos países no mundo adotam programas de acompanhamento de famílias vulneráveis com gestantes e crianças com até 6 anos de idade, por meio de visitadores treinados para dar assistência e as orientações dos cuidados necessários para o desenvolvimento da primeira infância. É o caminho certeiro para romper o ciclo geracional da pobreza. No Brasil existem cerca de 20 milhões de crianças com idade entre 0 a 6 anos, uma em cada três vivem na pobreza ou na extrema pobreza. E nosso País, pouca gente sabe, tem um dos maiores e melhores programas de visitação do mundo, uma referência na área, com cerca de 1 milhão de famílias atendidas de forma contínua e sistemática. Certamente veremos o resultado dessa poderosa iniciativa em poucos anos.


ree

Voltando aos órfãos da Romênia


Os primeiros anos de vida requerem cuidados específicos e complementares - ambiente limpo e seguro, alimentação saudável e equilibrada, vacinação, acompanhamento pediátrico etc.


No entanto, nada, absolutamente nada substitui o afeto. Ele simplesmente é a cola que garante todo o resto – o desenvolvimento físico, cognitivo e emocional.


E foi isso que faltou para as crianças abandonadas na Romênia. Faltou a qualidade das interações pessoais, faltou a possibilidade dos bebês estabelecerem uma conexão real com pelo menos um adulto responsável.


Proteger a vida de cada criança por si só já mereceria todos os nossos esforços enquanto sociedade. Mas, na verdade, não importa qual seja a motivação – pode ser financeira, por saber que haverá um capital humano mais produtivo e competente; individualista, pensando em viver num ambiente mais seguro e menos violento; humanitária, pela empatia e compaixão pelo outro;; moral, porque é o certo a fazer; espiritual, qualquer que seja a crença. Na verdade, o motivo tem pouca relevância, o que importa de verdade é saber que, com o simples fato de disseminar essa informação para o máximo de pessoas com quem você se relaciona, pode fazer a diferença e contribuir para que outro ser humano tenha condições de se desenvolver com a máxima plenitude que o dará as condições para exercer seu máximo potencial.


Felizmente, iniciativas profundamente simples e acessíveis a qualquer família, independentemente da renda ou da escolaridade, fazem total diferença – cantar para a criança, conversar com ela, olhar no olho, ler, brincar, confortar, estar presente.

Esse é o principal cuidado de hoje, que vai assegurar a construção do amanhã. A primeira infância é o maior patrimônio da humanidade, cuidar dessa preciosidade é a transcendência que precisamos para nos tornarmos humanos de verdade, em todos os sentidos. Jamais podemos perder de vista a consciência, como nos ensina o poeta inglês William Wordsworth (1770-1850), que “a criança é o pai do homem”. A infância dura para sempre; e uma infância “dura” é para sempre.



AssinaturaFundacao-Cogna.png

Av. Arthur Bernardes, 60

Vila Paris - Belo Horizonte

Tel: (31) 3344-6677

  • Facebook
  • LinkedIn
  • Instagram
bottom of page